Filha de Miguel Torga
Outra das paixões do autor é conhecer Portugal. Desde os tempos de Leiria, percorre o país de lés a lés, registando as paisagens, os monumentos, os modos de falar, os sabores do pão e do vinho, a feição das gentes. Em finais dos anos 40, viaja de automóvel com um amigo igualmente entusiasta, Fernando Valle Teixeira, cuja família tem casa na Quinta da Raposeira, em Lamego. As férias em Trás-os-montes, a caça e as idas anuais às termas do Gerês são também meios de conhecer palmo a palmo, com “uma erudição adquirida pelos pés”, os socalcos do Douro, a povoação mais remota, a capelinha românica abandonada, o castro em ruínas, as fragas mais altas da Calcedónia. Em 1950 publica o livro Portugal, uma “invenção de Portugal” (na fórmula feliz de um crítico francês) que é expressão dessa aprendizagem, dessa decifração e dessa compreensão da pátria. Chega a ir três vezes ao Algarve antes de encontrar a chave ou imagem moldurante (a das figueiras anãs) que resolve o respectivo capítulo:
“(…) a ideia que tenho dum paraíso terrestre, onde o homem possa viver feliz ao natural, vem-me dali. Casas cujos telhados, nem de colmo, nem de lousa, sejam açoteias de harém para um amor livre e espontâneo ao luar; gente que se não cubra de croças nem de pelicos, mas ponha a sombra preguiçosa dum guarda-sol sobre a quentura do corpo; e figueiras pequeninas, anãs, sem toco, onde nenhum Judas se possa enforcar de remorsos”.
A reflexão sobre Portugal incorpora a busca da própria identidade. Conhecer o húmus pátrio é conhecer-se a si mesmo, e a construção do “eu” inscreve-se sobre o retrato colectivo, como acontece no poema “Auto-retrato português” (Diário, vol. XI.). Torga explicita esta ideia em várias passagens da obra, por exemplo numa nota de 29 de Junho de 1988:
“Portugal. Foi a procura entendê-lo que compreendi alguma coisa de mim. As pátrias são espelhos gigantescos onde se reflecte a pequenez dos filhos. À nossa medida, herdamos-lhe a dimensão. E a singularidade. Todos os Alcáceres Quibir e todas as Aljubarrotas estão em mim. Descobri mundos e ando repartido por eles. Tenho também oitocentos anos de idade e pareço uma criança” (Diário, vol. XV).
Clara Rocha, Miguel Torga. Fotobiografia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, pag. 103 à 110.